sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Galera! Só quero que a História fique perpetuada!

Torcedor do Fluminense, Nélson Rodrigues se rende ao nosso eterno ídolo Garrincha em uma partida magistral, realizada 10 dias após a final da Copa do Mundo de 1958.

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Amigos, estou diante de um problema, que é o seguinte: — Garrincha foi, há pouco tempo, meu personagem da semana. Poderei repeti-lo sem irritar os leitores? Eis a verdade, porém: — não se trata de escolher, de optar. Ontem, só houve em campo um nome, uma figura, um show: — Garrincha. Os outros três campeões do mundo estavam lá também. Mas Didi, Zagalo e Nílton Santos pertencem à miserável condição humana. São mortais e suscetíveis de todas as contingências da carne e da alma. Jogaram por honra da firma e por um dever contratual. Estavam exaustos e no extremo limite de suas resistências emocionais e atléticas. Garrincha, não. Garrincha está acima do bem e do mal.

O problema de forma física e técnica não existe para ele, nunca existiu. Como os três outros campeões mundiais do Botafogo, ele foi massacrado por apoteoses consecutivas. Desde Brasil x Suécia que o “seu” Mané está em vigília permanente. E, no entanto, vejam vocês: — apareceu em campo com uma disposição vital esmagadora. Ninguém mais ágil, mais plástico, mais alado. Em campo, desde o primeiro minuto, foi leve como uma sílfide.

O futebol era, nesta terra, um esporte passional, sombrio, cruel. O torcedor já entrava em campo vociferando: — “Mata! Esfola!”. Ontem, porém, no Botafogo x Fluminense*, sentiu-se uma curiosa reação: — Garrincha trazia para o futebol uma alegria começou dez dias depois da Copa da Suécia, durante os quais os campeões do mundo foram submetidos a um festival de homenagens. inédita. Quando ele apanhava a bola e dava o seu baile, a multidão ria, simplesmente isto: — ria e com uma saúde, uma felicidade sem igual. O jornalista Mário Filho observou, e com razão, que, diante de Garrincha, ninguém era mais torcedor de A ou de B. O público passava a ver e a sentir apenas a jogada mágica. Era, digamos assim, um deleite puramente estético da torcida.

Aconteceu, então, o seguinte: — foi-se assistir a um jogo e viuse Garrincha. No fim, já as duas torcidas queriam apenas que Garrincha apanhasse a bola e começasse a fazer as suas delirantes fantasias. Então, aplaudiam nas arquibancadas, cadeiras e gerais, com uma euforia de macacas-de-auditório. Por exemplo: — o meu caso. Eu estava lá, como pó-de-arroz nato e hereditário, para torcer pela vitória do Fluminense e contra a vitória do Botafogo. Súbito começo a exultar também. Diante de cada jogada de Garrincha, eu experimentava a alegria que as obras-primas despertam.

E, no entanto, vejam vocês: — chamavam este homem de retardado! Só agora começamos a fazer-lhe justiça e a perceber a sua superioridade. Comparem o homem normal, tão lerdo, quase bovino nos seus reflexos, com a instantaneidade triunfal de Garrincha. Todos nós dependemos do raciocínio. Não atravessamos a rua, ou chupamos um Chica-bon, sem todo um lento e intrincado processo mental. Ao passo que Garrincha nunca precisou pensar. Garrincha não pensa. Tudo nele se resolve pelo instinto, pelo jato puro e irresistível do instinto. E, por isso mesmo, chega sempre antes, sempre na frente, porque jamais o raciocínio do adversário terá a velocidade genial do seu instinto.

No segundo tempo, quase não lhe deram bola. E aconteceu o inevitável: — o Botafogo caiu verticalmente. O Fluminense podia ter empatado, até. Mas ficamos num joguinho platônico, um futebol inofensivo, de passes para os lados e para trás. Resta saber: — de quem é a culpa? De uma indigência de recursos táticos? Ou faltounos um Garrincha, com suas penetrações fulminantes, as suas geniais invenções? No primeiro tempo, botafoguenses e tricolores punham as mãos na cabeça: — “Isso não existe!”.

Eu falei, mais atrás, que ele foi, na sua agilidade, algo de muito leve, de muito etéreo. De fato, na etapa inicial, Garrincha deu uma bicicleta de sílfide. Terminado o jogo, saímos do estádio com a ilusão de que tínhamos visto não um jogo, não dois times, mas uma figura única e fantástica: — Garrincha, o meu personagem da semana. 

Nelson Rodrigues, [Manchete Esportiva, 19/7/1958] 

* Botafogo 2 x 1 Fluminense, 10/7/1958, no Maracanã. O campeonato carioca

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